ONTEM JÁ FOI HÁ NOVE MESES Vou à pastelaria com a mesma convicção que as pessoas de roupão e chinelos
- Bom dia vizinho como é que está?
vão à rua buscar o pãozinho quente para fazerem de conta que estão no Pasta Caffé
- Buon giorno cara mia olha as carcaças
e atiram-nas para cima da toalha de mesa de plástico enquanto vão de jornal para a casa de banho
- Ler faz bem toda a gente devia ler
e eu a pensar que Lobo Antunes também deve saber quem goleou a equipa da casa naquele canteiro de relva que existe atrás do prédio
- Vê-se muito bem daqui não vê?
diz o homem das carcaças de cerveja na mão e de pés enfiados na cadeira de plástico que tem pregada ao chão da varanda para ninguém lha roubar
- Nunca se sabe isto anda duma maneira
e é com esta convicção toda que eu vou à pastelaria comprar um bolinho e lhe espeto uma vela
(não uma vela vá três quartos de uma vela)
e a acendo e sopro e volto à minha vida porque mais ninguém se interessa e em vez de viver hoje vou vivendo mais uma vez o dia de ontem
(lindo)
fui ao Coliseu ver o menino Rufus
- Oh Rufus grita a mãe dele Vai buscar uma saca de batatas à mãe
e o Rufus manda-a pedir ao homem das carcaças que ele tem mais que fazer tem vinte e quarto músicas para tocar para nós
e sentado ao meu lado está um homem de cinquenta anos
- Raios partam aquela mulher
e ao lado dele uma mulher de trinta
- É que é mesmo atrasada mental
e os dois à espera da filha dele que está com a atrasada mental
- Eu nem sei como é que fui capaz de estar casado com aquela atrasada mental
e a filha não chega
- Parece que nunca teve dezasseis ou dezassete anos
(dezasseis é dezasseis)
- E depois admiram-se que aconteçam problemas com a juventude
e quando ele se cala baixam-se as luzes e começa a cantar a senhora
- Hi how are you could anyone explain me why the national holiday?
e toda a gente grita Revolution e ela Revolution is nice e vai-se rindo e está nitidamente ganzada e eu que pensava que era da máquina de fumo
- É que é mesmo atrasada mental
vai dizendo o pai e eu vou tentando descobrir gays no público enquanto o do palco não chega e muitos casais e gajos que venham sozinhos não há muitos
(erm... pois)
e acabo por ser engolido pelo meu próprio estereótipo a tempo de as luzes baixarem
pela primeira vez vi o Coliseu sem cadeiras e aquilo estava um TO de qualidade
(não há hipótese de aquele tecido todo ter vindo de um só fornecedor)
e entra o menino Rufus e começa a cantar e parece uma alga debaixo de água
tinha umas calças cinzentas às riscas verticais brancas
(mas também podia ser ao contrário)
e uns sapatos em bico daqueles da loja da Zara no Cairo e tinha uma camisa cinzenta
(mangas arregaçadas)
com folhos à frente dos botões e coisas cor-de-rosa bordadas em cima dos folhos e pregado na camisa
(nada de piadas)
estava o maior broche de todos os tempos e o brilho a entrar-me pelos olhos e vai cantando muito bem até dizer que se vai embora e sai mas era a brincar
- Let them clap a little bit more
diz ele a preparar-se para voltar e quando entra começa a cantar e despe-se
e debaixo das calças uns collants brancos com riscas horizontais vermelhas
(mas também podia ser ao contrário)
e uma camisola interior de alças com o decote até ao umbigo e umas cuecas de fio dental com lantejoulas azuis e põe uns sapatos de salto alto vermelhos e um colar de pérolas e umas asas de borboleta e uma faixa
(Miss Porto)
e uma tiara e uma varinha de condão com uma estrela na ponta e continua a cantar e eu vou imaginando o que os polícias que estão a vigiar a sala estarão a pensar
- Olha-me que bichice
e por acaso é mas eles estão a gostar e ao fim de duas horas é impossível sair dali sem respeitar este menino e as dez músicas que ele segurou sozinho ao piano
- Onde é que aquela atrasada mental me tem a miúda?
e da miúda não sei mas este menino está no meu leitor de émepêtrês porque hoje vou vivendo o dia de ontem enquanto a epidural deixa de fazer efeito.
RC
gostei do encadeamento. nunca fui ao coliseu com cadeiras