E, porque não tinha mais nada para fazer, decidiu pensar.
Estava frio lá fora. O ar transformava-se em bolhas contra o vidro da janela, e lá dentro, perdido na nuvem de fumo queimado, enrolou-se nos braços da poltrona.
Decidiu pensar.
Já não tinha tido uma ideia desde que tinha decidido secar o gato no microondas, e nem tinha sido uma ideia assim tão boa.
(Francisco, 2002-2005)
Levou a mão ao queixo para pensar.
Pouca gente sabe como surgiu a posição de pensar.
Londres. As pessoas eram puxadas por cavalos e os primeiros motores iam tossindo vapor pelas ruas. O nevoeiro embrulhava as árvores de Hyde Park e construía-nos um túnel até aos tijolos vermelhos do Royal Albert Hall. Era noite de concerto.
Todas as pérolas estavam lá. Todos os cachimbos também. Um grupo chegou. Lord Hutchington e a mulher traziam consigo Lord Mackenzie. Ninguém sabia ainda que Lady Mackenzie se tinha matado com um pisa-papéis. Na verdade, ninguém deu muita atenção a quando ela pegou no pisa-papéis porque um dia em Ascot que estava ligeiramente mais ventoso ela foi vista a pôr um em cima da cabeça para não voar.
Do outro lado da sala, Lord Carrington viu-os. Arrastou a mulher com ele pelo ladrilho e cuspiu
- Boa noite, Lord Mackenzie, há bastante tempo que não o víamos por cá
e a mulher ia abanando a mola do pescoço como os palhaços das caixas, de olhos riscados a marcador em bolas de ping-pong, que não fixam, que não vêem,
- Grande concerto hoje, não acha, Lord Mackenzie?
continuou a cuspir Carrington, pingando de orgulho porque o terceiro violino
(- A contar da esquerda para a direita)
era um espermatozóide seu que tinha dado certo e havia de ficar com os dentes de ouro da família
e Mackenzie só disse
- Na verdade, não quero saber
uma veia saltou da testa de Carrington
- Não estou muito interessado com o concerto hoje, na verdade
Carrington mastigava já a língua enquanto Mackenzie
- na verdade, nem sei muito bem quem vai tocar nem o quê
(- O meu filho)
(- Ah, e Mozart, acho que é)
e ao pensar isto, Lord Carrington cresceu em raiva, fechou o punho, e ordenou ao criado que desse um murro a Mackenzie.
Ele deu.
E sentado no camarote durante toda a noite, Mackenzie segurava no maxilar de camisa em sangue, e toda a gente que o via, de olhos na orquestra e queixo na mão, perguntava à cadeira ao lado
- O que é que o Mackenzie está a fazer?
e qualquer uma vomitava, pelas pregas do veludo, o mesmo
- Eu parece-me que está a pensar.
RC
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